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Violência contra a mulher: assédio processual tem repercussões graves no Direito das Famílias
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“O resultado pretendido distingue o ato regular/moderado do ato ilícito/abusivo”, diz especialista
Acionar o Judiciário de forma abusiva para intimidar, constranger ou conseguir vantagem indevida são algumas das características do assédio processual, popularmente chamado de violência processual. Essa é mais uma roupagem da violência contra a mulher, capaz de silenciar e revitimizar mulheres e pessoas próximas a elas.
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por meio da Resolução 492/2023, tornou obrigatórias as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo Poder Judiciário. O objetivo é superar a desigualdade e a discriminação por meio da imparcialidade no julgamento de casos de violência contra mulheres, sem se basear em estereótipos e preconceitos.
A professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, explica que o amplo acesso à Justiça é um direito fundamental previsto na Constituição Federal. O abuso nesta seara, segundo ela, pode ser configurado pelo ajuizamento de ações sucessivas e sem fundamento idôneo, para atingir objetivos maliciosos.
Na opinião da especialista, o sistema de Justiça é um reflexo da sociedade, muitas vezes permeado por estereótipos e preconceitos. Deste modo, a violência de gênero também pode ocorrer neste espaço e revitimizar as mulheres. “Violência essa geralmente não percebida ou ignorada por inúmeros operadores do Direito.”
“Pode-se encontrar, por exemplo, uma exposição desnecessária da vida privada da mulher no processo; interposição de petições desnecessárias, recursos infindáveis, tumulto processual, e toda a sorte de obstáculos para a tramitação dos processos, descumprimento de decisão judicial em relação a alimentos, de convivência com os filhos, reiteração de ações, podendo configurar-se o abuso, o assédio processual e até mesmo a litigância de má-fé”, exemplifica.
De acordo com a diretora nacional do IBDFAM, o processo civil moderno adota, além dos princípios do devido processo legal, da boa-fé processual e do contraditório, o caráter cooperativo na sua condução, sendo inaceitáveis chicanas e expedientes escusos e ilegais com o objetivo de prejudicar a outra parte ou criar-lhe problemas.
“Muitas vezes, entretanto, ocorre abuso de direito, manifesto e grave, que conjuga litigância de má-fé e assédio processual. Essas condutas, muitas vezes presentes em ações de família, constituem violência psicológica de gênero e geram danos emocionais”, ressalta a especialista.
Segundo Adélia, a situação desencadeia consequências para a saúde mental e bem-estar emocional da vítima. Entre elas, desconfiança, sentimento de abandono, depressão, ansiedade, isolamento, estresse pós-traumático, aumento na automedicação e tentativas de suicídio.
Uso excessivo
A professora entende que o resultado pretendido distingue o ato regular/moderado do ato ilícito/abusivo. “O uso excessivo do direito de ação, ou seja, o exercício imoderado de direitos deve ser combatido.”
“Pensar diferente seria colocar-se na contramão dos fundamentos e objetivos traçados pela Constituição e pelo Direito Processual contemporâneo. Os fins da jurisdição acabam sendo abalados e frequentemente não são realizados adequadamente, diante do abuso no uso das faculdades processuais”, comenta.
O assédio processual, neste sentido, é uma modalidade de abuso do direito por meio da deliberada utilização de sucessivos instrumentos procedimentais com a finalidade de atingir a esfera psicológica da outra parte. “Atinge não só a parte assediada, mas também o Estado, por meio do Poder Judiciário, pelo tempo e trabalho despendido pelo Sistema de Justiça nesses processos.”
Ainda de acordo com Adélia, o assédio processual é considerado ato ilícito no ordenamento jurídico pátrio, e, somando-se à existência do dano moral, gera o dever de indenizar. Conforme o artigo 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
“O artigo 927, desse mesmo diploma legal, obriga o causador do dano a repará-lo. Cometido o ato ilícito do assédio processual, cabe ao assediante indenizar a parte prejudicada dos prejuízos materiais e imateriais, nos termos da responsabilidade civil disciplinada no CC”, detalha.
Assédio processual
No entendimento da especialista, o emprego das medidas processuais legais não é motivo suficiente para afastar, por si só, a condenação por assédio processual, “pois sempre será ele praticado por meio de medidas processuais em princípio legítimas”.
“Muitas vezes o assédio processual consubstancia-se na atuação do autor, por meio do abuso do direito, pela inobservância dos deveres das partes, especialmente no que se refere à lealdade e a boa-fé, com o objetivo inconfessável de vingança ou outros sentimentos menos nobres contra a mulher”, aponta.
O assédio processual não afasta a litigância de má-fé, frisa Adélia. “Com o advento da possibilidade de responsabilizar a parte pelo assédio processual, existem meios eficazes de combate aos que usam o Judiciário para seus intentos inconfessáveis.”
“A litigância de má-fé, expressa no artigo 80 do atual Código de Processo Civil, enumera, exemplificadamente, um elenco de condutas previstas. O assédio perfaz uma amplitude maior, englobando uma gama de práticas já tratadas em várias decisões judiciais e na doutrina”, avalia.
Quem atua como litigante de má-fé e comete assédio processual pode ter sua punição decretada pelo juiz nos próprios autos nos quais a irregularidade ocorreu. “Ao se confirmar o assédio, há necessidade de fixação de indenização, como instrumento destinado a tornar realidade a propalada e desejada efetividade processual, desestimulando a chicana, desencorajando outros litigantes”, esclarece.
Ela continua: “Assim, a reparação cumprirá suas três funções básicas: compensatória (para amenizar o sofrimento da vítima), pedagógica (ensinando ao assediador a não agir desse modo, sob pena de sofrer um prejuízo material) e repressiva (tornando desinteressante ao infrator reiteração de conduta dessa ordem).
Contemporaneidade
De acordo com Adélia Pessoa, o Direito resulta de uma construção hermenêutica diuturna e reflete os valores da cultura subjacente. “A prática jurídica não se exaure nas leis e há um papel relevante na criação judicial do Direito.”
“O Judiciário pode contribuir na desconstrução de crenças, estereótipos e preconceitos, com a consequente transformação cultural na sociedade, ou pode ser o contrário, com a reprodução de padrões sexistas que não podem mais prosperar na sociedade do século XXI”, observa.
Nas decisões judiciais, acrescenta a especialista, está presente a visão de mundo do julgador. “A neutralidade do julgador é uma falsa ideia e está em processo de superação a clássica figura do magistrado neutro, ascético, cumpridor da lei e distante das partes e da sociedade.”
“Afinal, qual verdade o julgador tem à sua frente, nos autos, por exemplo, em uma ação de divórcio litigioso, na qual a violência doméstica e familiar fica, muitas vezes, invisibilizada, especialmente a violência psicológica e patrimonial?”, questiona
Na visão de Adélia, o que não está nos autos, não está no mundo. “Até para apreciar a prova coligida, está presente a Weltanschauung (visão de mundo) do julgador, pois seu olhar depende de sua história, de sua existência, de seu ser-no-mundo.”
“O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, como já dizia Michel Foucault. O mito da neutralidade revelou-se um verdadeiro empecilho, pois impede ver a vida com seus condicionamentos culturais”, frisa.
Convenções
Adélia acredita que o Direito contemporâneo deve ser visto pelo Judiciário à luz não só da Constituição, mas também de convenções internacionais sobre discriminação e violência contra a mulher ratificadas pelo Brasil. Ela cita a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – CEDAW e o comitê fiscalizador da aplicação.
“A Recomendação n. 33 do Comitê CEDAW reforça a necessidade de as mulheres poderem contar com um sistema de justiça livre de mitos e estereótipos, e com um Judiciário cuja imparcialidade não seja comprometida por pressupostos tendenciosos. Eliminar estereótipos no sistema de Justiça é um passo crucial na garantia de igualdade e justiça para vítimas e sobreviventes”, declara.
Para a especialista, é necessário afastar velhos paradigmas. “A Justiça se faz em sintonia com a realidade, com as relações sociais e com o contexto socioeconômico. O que está ocorrendo em nosso dia a dia? Os comportamentos misóginos, machistas, muitas vezes são naturalizados e invisibilizados.”
Violência
A presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM aponta desafios para a apuração dos dados de assédio processual no Brasil, em razão do segredo de Justiça. Contudo, garante: “É um fenômeno generalizado e independente de classe social, idade e raça”.
“A violência doméstica está ainda presente no cotidiano da maior parte das famílias brasileiras, não se restringindo ao lar, mas tendo nele sua origem. Mulheres agredidas por seus parceiros, em suas próprias residências, ou em decorrência dessas relações de afeto”, afirma.
O Brasil é o quinto país em assassinatos de mulheres, lembra Adélia. “Um percentual altíssimo de mulheres morre em decorrência de suas relações familiares, diferentemente dos homens, geralmente vítimas de homicídio no espaço público.”
A diretora nacional do IBDFAM destaca a atuação do Conselho Nacional de Justiça para o enfrentamento a esse tipo de violência, por meio de ações como as Jornadas da Lei Maria da Penha (11.340/2006); FONAVID e seus enunciados; Justiça pela Paz em Casa; Monitoramento da Política Judiciária Nacional, Formulário Nacional de Avaliação de Risco, incentivo às boas práticas, pesquisas e campanhas nacionais.
“Vale ressaltar a preocupação do CNJ em assegurar atendimentos mais humanizados às vítimas, conforme o artigo 9º da Política Judiciária Nacional. O texto configura violência institucional como a ação ou omissão de qualquer órgão ou agente público que fragilize, de alguma forma, a preservação dos direitos das mulheres”, explica.
Adélia evidencia a necessidade de implantação de Juízos de Família e Violência Familiar, com definição de competência híbrida, para apreciação por um único juízo de demandas de violência doméstica e familiar e de ações decorrentes. A competência híbrida já é prevista pela Lei Maria da Penha, mas ainda enfrenta resistência de alguns estados da Federação.
Ela menciona o relatório “O Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, no qual foram constatados gargalos no acesso das mulheres em situação de violência ao Judiciário. “A pesquisa revelou diferenças variadas entre os atendimentos das unidades judiciárias em relação ao recomendado pela LMP.”
“É urgente a adequação das Leis de Organização Judiciária dos Estados a essa disposição da lei sobre a competência híbrida dos juizados de violência doméstica para incluir ações cíveis decorrentes da Violência Doméstica e Familiar, para que a mulher não mais precise percorrer um calvário, em Varas distintas, em busca de seus direitos e de seus filhos”, conclui a especialista.
Por Débora Anunciação
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